terça-feira, 2 de março de 2021

Bicicleta: o melhor meio de transporte sobrevivencialista?


Ao longo das últimas semanas levamos a cabo alguns exercícios de brainstorming, um deles focando o meio de transporte mais adequado para nos deslocarmos até ao abrigo de eleição no interior do país. Ao princípio tal pareceu-nos óbvio: isto quando tudo correr mal é entrar no carro e ir estrada fora, assim de simples.

Pois, quem já tenha estado duas horas preso no trânsito na IC19 ou na Ponte 25 de Abril estará plenamente ciente de que lá porque não estamos longe de um qualquer sítio pode tornar-se um pesadelo tentar lá chegar de carro, uma vez que mesmo no pico do Verão com pouco trânsito e condições ideais para uma condução em segurança todos sabemos que há sempre um qualquer acidente que nos retém como reféns na estrada durante horas. 

Agora, imaginem se estivermos perante uma catástrofe como um terramoto, um derrame nuclear ou um tsunami? Muitos dos filmes, séries e livros pós-apocalípticos descrevem-nos como as estradas ficaram apinhadas de veículos sem combustível ou sem espaço de manobra com um engarrafamento eterno, então qual o melhor meio de transporte no meio do caos? Uma bicicleta! Ao contrário de uma motorizada nunca irá precisar de combustível para funcionar e uma corrente e pneus extra não fazem grande mossa ao orçamento.

Por sorte quando estávamos prestes a escrever um texto sobre a mesmo, descobrimos que o Fabian Ommar tinha feito o mesmo exercício que nós e então decidimos traduzir e reproduzir o texto dele.

RAZÕES PELAS QUAIS A BICICLETA MUITO PROVAVELMENTE SERÁ O DERRADEIRO MEIO DE TRANSPORTE

Já pensaram em como se irão movimentar caso entrar num carro e conduzir até onde queremos ir deixe de ser uma opção? O transporte e a mobilidade são factores extremamente importantes na prontidão.

A mobilidade pode variar de modo relevante numa situação SHTF versus a normalidade. Mas retém o seu papel essencial no que toca à logística e à segurança. Temos que manter a mobilidade para reabastecer os mantimentos, procurar ajuda (ou ajudar outras pessoas), comunicar, evitar ameaças, etc. Caso as coisas não se tenham transformado por completo em modo Mad Max, vai precisar de um meio de transporte alternativo.

Então qual é o derradeiro veículo SHTF? Consegue encontrar por aí todo o tipo de veículos de fuga finórios, mas caso tenho um orçamento reduzido podem não ser opção. Talvez seja altura de ter em conta a humilde bicicleta.

A mobilidade (ou falta desta) depende muito do cenário

Guerra, lei marcial, desastre natural: cada situação exige uma estratégia, tendo em conta a velocidade, a distância, o meio de transporte e a capacidade de carga, bem como o estado das infraestruturas. Seja como for, temos de conseguir mover-nos com a maior segurança possível. Quando se alteram as restantes regras, também se deve alterar as da mobilidade. 

Ter mobilidade tem um único propósito, mas várias razões e diferentes formas. Por vezes temos que ir depressa. Outras vezes ir depressa significa atrair atenções indesejadas ou arriscar ter um acidente. Há também a distância limite e a capacidade de carga. Há coisas a fazer nas imediações, e há coisas a fazer lá longe. Por vezes temos que nos movimentar lenta e silenciosamente

Como a SHTF afecta a mobilidade

A situação SHTF pode afectar a mobilidade de muitas maneiras. Desde a pandemia de COVID-19 e toda a loucura que esta trouxe, vimos quão rápido as coisas podem mudar.

Durante uma SHTF, é indubitável que ocorra caos social. E é provável que surjam engarrafamentos, bloqueios, entulho e outros obstáculos que afectem, ou talvez até impeçam, o trânsito e os transportes públicos. Inundações, terramotos e eventos semelhantes também podem destruir as infraestruturas. Há também o risco de quebrarmos o recolher obrigatório, de testemunharmos conflitos e de sermos alvo tanto das autoridades como de criminosos. As vagas de crime também são uma preocupação.

Temos que ponderar bem e encontrar soluções flexíveis e fiáveis. Normalmente são as mais simples.

Planeie de antemão os cenários mais prováveis durante a SHTF

Combustível é algo difícil de armazenar e não pode ser reciclado. Ocupa espaço, tem um cheiro forte, emite gases, atrai a atenção. Exige um esforço intenso e equipamento especializado para ser produzido. Mal acabe e houver escassez, é difícil de improvisar ou substituir, embora existam algumas possibilidades. Mesmo que as estradas e os veículos ainda existam depois de um cataclismo ou SHTF (inundação, terramoto, o quer que seja) o acesso ao combustível será, no mínimo, um desafio. 

Conheço algumas pessoas que armazenam combustível para SHTF. Para aquecimento e cozinhar, tudo OK. O combustível é essencial. Nas zonas rurais e quintas, a norma é armazenar combustível. Mas pode ser perigoso e não é lá muito prático para citadinos. A maior parte das pessoas das cidades tem espaço limitado e outras restrições, algumas delas legais.

O combustível armazenado pode não durar muito perante uma escassez prolongada ou um colapso. No final do ano passado, todo um Estado brasileiro ficou sem energia durante mais de um mês devido a uma falha no transformador de uma central. Até sítios como hospitais que estão sempre preparados para este tipo de situações tiveram problemas passada apenas uma semana. O combustível gastou-se, foi confiscado, saqueado ou vendido no mercado negro. É assim que as coisas funcionam (ou melhor dito, não funcionam) numa situação real de SHTF.

Caminhar é a opção mais básica e simples

Andar a pé é intemporal. É talvez a melhor maneira de nos movermos quando as coisas azedarem. É básico, lento, nada finório e gratuito. (Talvez seja por isso que não lhe dão grande atenção nem promoção.) É mais seguro do que correr e mais suave para com o corpo.

Em tempos de loucura devemos fazer as coisas de modo lento e ponderado. A maior parte dos sobrevivencialistas dizem isto porque é o que funciona melhor.

As bicicletas estão no topo da lista das máquinas mais eficientes e versáteis alguma vez criadas

Mas por vezes precisamos de velocidade ou de uma capacidade maior de carga sem abdicar da discrição. Vou dar um exemplo ou dois: de modo a cobrirmos mais terreno (seja urbano ou rural) de modo mais rápido e sem atrair muita atenção, as bicicletas muito provavelmente são o melhor veículo a utilizar durante uma SHTF. É um multiplicador de esforço simples, legítimo e discreto.

Este conceito é bastante óbvio para sobrevivencialistas: a eficiência é uma mais valia no âmbito de um desastre. Torna-se tudo mais difícil, e temos que lidar com muitas mais coisas empregando o menor grau de energia possível. Qualquer ferramenta ou utensílio que possa aumentar as nossas capacidades é muito bem-vinda.

De bicicleta uma pessoa consegue viajar mais de 3.200 quilómetros empregando a mesma energia que um garrafão de combustível. O dobro de alguém a correr, sem o mesmo impacto, e durante muito mais tempo antes de atingir a exaustão. Uma bicicleta consegue carregar 10 vezes (ou mais) o seu próprio peso e o ciclista pode facilmente empurrá-la ou carregá-la sobre os obstáculos, se for preciso. Podemos andar de bicicleta mesmo por entre o caos mais absoluto. Foram utilizadas com sucesso durante as guerras tanto por civis como por militares.

Eis algumas mais valias das bicicletas:

Podemos andar de bicicleta fora das estradas;

Podemos ir a favor do trânsito ou em contramão;

Podemos utilizá-la tanto na rua como dentro de edifícios (de dia e de noite, à chuva ou ao Sol);

As bicicletas podem ser levadas pelas escadas ou dentro de elevadores;

Podemos levar as bicicletas dentro de comboios, autocarros ou carros;

É fácil camuflar e esconder uma bicicleta;

PEMs ou apagões não afectam as bicicletas (a não ser que sejam eléctricas - já lá chegarei);

As bicicletas conseguem circular sobre superfícies em mau estado, como ruas destruídas ou cobertas de entulho;

As bicicletas são relativamente baratas (se for roubada, danificada ou abandonada não levará ninguém à falência);

As bicicletas podem ser consertadas ou substituídas facilmente e sem grande custo;

É mais fácil e barato fazer a manutenção a uma bicicleta do que a um carro;

Conseguimos repará-las na estrada, ou convenientemente dentro de casa;

As peças sobresselentes são quase todas padrão e baratas (embora nem sempre, admito);

Podemos obter peças sobresselentes a partir de outras bicicletas;

E podemos fazer um seguro para a nossa bicicleta (se isso for uma coisa que subsista depois de uma SHTF).

Cobre muita coisa, não concordam?

Mas não é tudo, há ainda mais vantagens

As bicicletas são silenciosas, muito mais silenciosas que uma motorizada ou um automóvel. Isso por si só já é uma enorme vantagem táctica em algumas situações.

Também conseguem levar alguma carga, embora o peso se possa tornar num problema e tenha as suas limitações a partir de determinado limite. É possível utilizar um reboque de carga para levar mais coisas, embalagens de maior dimensão ou outras pessoas. (Como idosos, crianças, feridos ou com problemas de mobilidade).Claro, tal significa menos agilidade e velocidade, mas a velocidade nem sempre é algo bom durante um SHTF. Considere os prós e contras de acordo com a sua situação.

De bicicleta conseguimos fugir rapidamente de motins, protestos e situações perigosas. Uma bicicleta é da fácil utilização para irmos procurar alguém ou mantimentos, para prestar ou procurar auxílio. Podemos evadir-nos da cidade e andar de modo definitivo de bicicleta. Utilizar bicicletas para protecção pessoal? Sem dúvida! Uma bicicleta pode ser utilizada como barreira entre nós e outras pessoas (ou animais). A polícia tem utilizado bicicletas como barreiras em alguns países para controlar manifestações e fazer desbandar grupos em estádios e outros locais com grandes concentrações.

E nem comecei a revelar todos os benefícios físicos e psicológicos de andar de bicicleta.

Melhores práticas para ciclistas, dotados e nem tanto

Caso já seja ciclista, provavelmente já detém as mais valias de ter alguma resistência e de manter o ritmo. Em vez de andar, conduzir ou de andar de transportes, pode utilizar a bicicleta como treino. Ando de bicicleta 4 a 6 vezes por semana, levando um saco de treino (com peso acrescido, para me habituar à carga extra) uma ou duas vezes por mês no meu treino sobrevivencialista.

Caso nunca tenha andado de bicicleta e queira começar agora, é melhor procurar aconselhamento profissional. Pondere e adapte-se, prestando atenção a coisas como a segurança e a saúde. Andar de bicicleta faz com que nos movamos quatro ou cinco vezes mais depressa do que a pé. Por vezes mais. Tal significa que temos que nos concentrar na estrada, nos carros, nas pessoas, no trânsito e em tudo ao nosso redor.

Andar a pé também aumenta a resistência, permite que nos foquemos em estratégias, trilhos, análise ou onde obter alimentos e água no decorrer do treino. Se adicionar uma bicicleta, desenvolva outros aspectos: reflexos, visão de longo alcance, antecipação e contorno de obstáculos, atributos de ciclista, cardio.

Pode optar por muitos tipos de bicicleta

Andei de bicicleta a vida toda, tanto dentro como fora de estrada, ao ponto de competir a nível local durante alguns anos. Adoro tudo isso. Mas para SHTF, a minha opção recai sobre uma bicicleta de todo terreno ou uma híbrida.

Bicicletas com pneus largos são mais robustas, e como tal aptas a todos os tipos de pavimento. Ao contrário das de pista/corrida, mais esguias, mais aptas para trilhos bem conservados e suaves. As BTTs providenciam ainda um posicionamento mais elevado e um manuseio mais ágil. Isto é uma bênção quando temos que ziguezaguear, cortar curvas e para ter um maior conforto e versatilidade de um modo geral, principalmente em trilhos mais acidentados. Calçado e pedais todo o terreno são também mais adequados para andar e mais versáteis em vários tipos de terreno.

As híbridas, também apodadas "de cidade", também podem ser uma boa opção. São mais robustas que uma bicicleta de pista contudo não tanto como uma todo o terreno. O quadro normalmente inclui apoios traseiro e dianteiro, úteis para instalar uma bolsa e carga, puxar um reboque ou outro tipo de aparelho. As rodas são grandes (700C), mas o pneus são mais largos, fortes e aderentes que as de pista.

Outra opção são as bicicletas eléctricas

As bicicletas eléctricas aparecem até em romances SHTF, como o clássico Wolf And Iron de Gordon R. Dickson, onde a personagem principal, "JeeBee" Walther, inicia a sua jornada pós SHTF (um colapso económico) no protótipo de uma e-bike recarregável com energia solar.

As e-bikes podem andar a grande velocidade e levar mais carga. Também poupa forças ao utilizar uma bicicleta motorizada, e é sempre algo a ter em conta durante uma SHTF. São também silenciosas, fiáveis, duráveis e exigem pouca manutenção. Embora um pouco mais do que as bicicletas convencionais movidas a humano. Mesmo assim, acarreta muitas das vantagens de uma motorizada sem a necessidade de combustível, placas de matrícula ou outras complexidades como o peso e o ruído.

O senão são os longos períodos de carga e uma autonomia relativamente limitada. Se uma e-bike ficar sem energia, ainda é possível pedalar, mas o peso faz com que seja demasiado difícil. Também não estou ciente de quaisquer e-bikes actuais que possam ser carregadas por painéis solares mais compactos. Contudo, podemos utilizar sistemas mais poderosos se a rede for abaixo. Normalmente precisam de um cabo ou adaptador especial para carregar.

Por último, se acreditarem que um PEM ou DEM possam suceder numa SHTF, estejam cientes de que tal afectaria o seu funcionamento como o de qualquer outro aparelho eléctrico. Mesmo assim, dados os prós, não me surpreenderia se muitos optassem por uma bicicleta eléctrica durante uma SHTF.

Outras coisas a ponderar previamente

Se utilizar uma bicicleta ou e-bike está nos seus planos SHTF, invista na qualidade, mas ignore os extras vistosos e complicados. Opte por algo básico e discreto. É também importante adquirir ferramentas (bombas, ferramentas multifuncionais, óleo para correntes, micro-ferramentas, desmonta-pneus, etc.), sobressalentes (pneus, correntes, travões, pipos, etc.) e equipamento (luzes decentes, um bom cadeado e bolsas e apoios traseiros que aumentem a versatilidade). Procure as peças mais comuns que tendam a avariar ou a precisar de substituição.

Opte por pneus fortes sem câmara de ar com espuma anti-furo. Não se esqueça de levar espuma anti-furo sobressalente e kits para reparar pneus sem câmara de ar. Ambos são extremamente fáceis e simples de utilizar, e baratos.

Aprenda a fazer manutenção de bicicletas (pelo menos o mais básico)

Pode descarregar ou imprimir um guia e mantê-lo à mão. Nesses guias encontrará instruções sobre lubrificação e como limpar a transmissão, mudar os pneus, remendar furos, correntes partidas, mudar os pneus e ajustar mudanças. As e-bikes são robustas e a manutenção é de um modo geral semelhante às das bicicletas convencionais, como limpeza e lubrificação. Mas o sistema eléctrico (baterias, circuitos e controlos) exige um conhecimento e ferramentas específicas.

Opte pela bicicleta que for mais adequada para si e mantenha-a sempre pronta a andar e em boas condições. A bicicleta adequada é essencial para evitar ferimentos e baixa performance. Pode ser determinada por um especialista ou aprendido na Internet. Existem um sem fim de vídeos, artigos e tutoriais em todo o lado hoje em dia sobre estes e outros temas relacionados com bicicletas. Claro, como sempre, a melhor maneira de aprender tudo isso é andar mesmo nela de modo persistente. Por isso continue a pedalar.

Conclusão

Se uma opção de duas rodas lhe parece demasiado complicado, pode sempre caminhar, ou até correr, como opções alternativas. Nunca falha seja qual for a situação.

E que tal motos 4x4, motociclos, veículos de fuga e semelhantes? São mais complicados, bem mais caros, e exigem combustível, mas alguns sobrevivencialistas atestam a sua fiabilidade. Dependendo do contexto, estes e outros veículos podem ser utilizados com grandes vantagens.

Suponho que dependa muito das estratégias e planos de cada um. Mas a vida e a realidade têm este hábito estranho de se estarem nas tintas para os nossos planos. Ou seja, não há como saber o que vai acontecer e o que poderá ou não funcionar. É por isso que é uma boa ideia cobrir o essencial. Depois pode aplicar outras estratégias e alargar o leque de opções.

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Fabian Ommar

Fabian Ommar é um trabalhador de classe média com 50 anos a residir em São Paulo, Brasil. Longe de ser o tipo de sobrevivencialista altamente táctico e com treino militar, é o José Ninguém que desde a sua juventude participa em actividades ao ar livre e de autossustentabilidade com a praticabilidade de viver entre o ambiente de uma cidade grande e o rural/selvagem. Desde a crise económica mundial de 2008, tem treinado e auxiliado outros na sua área a preparar-se para o "SHTF constante e lento" de viver num país do Terceiro Mundo.

O livro digital do Fabian, Street Survivalism: A Practical Training Guide To Life In The City, é um método de treino prático para citadinos que se inspira no estilo de vida dos sem-abrigo (sobrevivencialistas da vida real) para nos prepararmos psicologicamente, mentalmente e fisicamente para lidar com a dura realidade das ruas tanto em tempos normais como difíceis. 

Pode seguir o Fabian no Instagram: @stoicsurvivor

Tradução: Flávio Gonçalves

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